Eu sei que tu sabes que eu sei

São quase nove da noite e tu ainda não chegaste. Sento-me, silenciosamente, no sofá. As pernas, discretamente cruzadas, o cabelo penteado, apanhado na nuca, a roupa limpa e sem um vinco. Seria incapaz de receber o meu homem de avental posto, a cheirar a fritos, toda suada e com o buço por fazer. Nunca! Não foi assim que a minha mãe me educou. Já lhe basta a dor de saber que a sua filha mais velha vive em pecado. É por ela que, inconscientemente, aguento este passar de dias, este ram-ram sem fim, esta espera. Eu sei que vou conseguir.
Ouço o sinal sonoro do forno. Comprámo-lo há pouco tempo. É um daqueles exemplares ultra-modernos, design italiano, tecnologia de ponta. Temperatura controlada, desliga-se sozinho. Um pouco como eu. O aroma das beringelas recheadas (um prato requintado, leve, ideal para um jantar a dois) chega, quase imperceptivelmente, até mim. Observo demoradamente as minhas mãos. As unhas estão impecavelmente arranjadas, pintadas com verniz transparente. Um anel, de ouro branco, repousa, adormecido, no dedo médio da mão esquerda. Fixo-me no que está ao lado, no anelar. Desnudo, só. Mas eu vou conseguir.
Decidi desde cedo que não seria igual às minhas amigas. Eu decidi que não coleccionaria aventuras amorosas, orgasmos, fodas, paixões e amores inconsequentes. Eu decidi ser uma senhora, uma mulher em condições. Eu escolhi ter poucos, mas bons, namorados. E tu foste o escolhido, porque os 30 aproximam-se perigosamente e eu estou próxima do meu prazo para engravidar. Está tudo planeado, tu é que ainda não percebeste.
Eu sei que tu sabes que eu sei que me enganas. Queres acreditar que não, mas eu sei. Sinceramente, não me importo. Fere o meu orgulho de fêmea, mas é uma emoção passageira. Eu sou superior a isso. Aos perfumes adocicados na tua roupa, aos teus beijos, que mudam de feição cada vez que mudas de amante, à forma desesperada como fazes amor comigo, ao teu olhar, entretido e estupidamente culpado. Sei exactamente como te manter comigo e sei porque continuas aqui. Deixei, a pouco e pouco, de te questionar, de discutir contigo sobre coisas demasiado superficiais ou profundas. Agora, apenas falamos sobre o essencial. A casa, o carro, o trabalho, as viagens que faremos juntos, os nossos amigos comuns (que, felizmente, começam a casar e a assentar), os teus e os meus pais. É reconfortante não ter de te confrontar com o que já sei. Deixo-te viver, soltar a tuas amarras, ser um garanhão que corre, desenfreado, atrás das éguas. Mas, aqui, entre estas quatro paredes que só a nós nos escutam e nos contêm, sou eu quem marca o ritmo. Com o meu silêncio, as minhas pausas, os meus sorrisos contidos. Faço o teu prato favorito, finjo gostar da música que ouves, baixo o som da televisão para não perceberes que estou a ver a telenovela, deixo um livro interessante na minha cabeceira. Se te apetecer, faremos sexo. Debaixo do morno dos lençóis, passarás o teu braço na minha cintura, descerás a tua mão até ao meu baixo ventre, esfregar-me-ás até ficar morna, ensopada de mim mesma. No ponto. De costas para ti, estenderei o me braço até à tua virilha e, sem demasiado entusiasmo, certificar-me-ei da tua (quase imediata) dureza e só então despirei a camisa de noite. Tu puxarás os boxers para baixo e… cumpriremos. Não direi que não gosto. Sim, claro que gosto! Gosto de sentir o teu abraço, a tua respiração ofegante na minha nuca, a força infinita de conseguir fazer-te vir. Sinto-me poderosa cada vez que as tuas investidas se tornam mais rudes, mais animais. Chego a ter pena de ti. Por mais inteligente, mundano, sábio, viajado e racional que sejas, é para isto que tu vives. É por isto que te alimentas. Uma mísera poçazinha de leite azedo, uns míseros mililitros de vida perdida, em espasmos irregulares. Uns segundozinhos de glória involuntária…. Que tristeza.
Eu não quis tornar-me numa dessas mulheres patéticas com quem dormes, que pensam que podem sair pelas ruas e foder à doida, como se fossem homens. Essas histéricas que acreditam que o amor nasce do corpo e se conserva à força de muito sexo e extravagâncias. Dizem-se muito modernas, mas no fundo são umas tontas. Ainda não perceberam que, no fim do dia, quem dorme sozinhas são elas, não eu.
Não falo alto, não digo asneiras, sei cozinhar, tenho um peso adequado para a minha altura. Não fumo, não tenho celulite. Não sou demasiado bonita mas, com o vestido preto adequado, não passo despercebida numa festa. Tenho tudo o que é preciso para conseguir.

Comentários

SDF disse…
Parabéns! Bom exercício de escrita. Conseguiste neste texto um excelente retrato literário do que é a hipocrisia lusitana, fruto de uma cultura marcadamente católica-apostólica-romana.

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