Brownie de chocolate com gelado de baunilha

Aí vem ele… doce tentação

A sala estava meia vazia. O chão, cor de ébano, contrastava com o branco cosmopolita das paredes, da luz tersa dos candeeiros, do vidro que me separava da cidade. O prato, alvo, produzia reflexos multicolores, à medida que avançava pela sala adentro. As linhas rectas combinavam harmoniosamente com os cantos arredondados. Anguloso e curvilíneo. Aparentemente, era demasiado grande para receber o conteúdo, mas depressa me apercebi que o espaço tinha sido concebido na proporção ideal para dispor todos os elementos…

Cheguei cedo, como sempre. Entrei assim que abriram as portas e esperei. A noite estava fresca, quase fria, soprava um vento desagradável, o que tornava as ruas íngremes e escuras ainda mais inóspitas. Ali estava-se bem. A música ronronava, sininhos, soluços de sintetizador, baterias computorizadas, versos repetitivos. Uma esfera revestida de espelhos baloiçava, enforcada no tecto esbranquiçado, e produzia inúmeros reflexos no chão. Se o fixasse atentamente, ficaria meio zonza, meio anestesiada. Há um vidro que separa o hall da sala central. Olhei e vi-o, através desse vidro (sorriu). O vidro desapareceu…

Fiquei sem fôlego. Que maravilhosa composição! O sangue corria, nervosamente, nas minhas veias. Semicerrei os olhos, em puro êxtase. A gula apoderou-se, lentamente, da minha (já escassa) racionalidade. Curvei-me para aspirar o aroma que se dispersava no ar. Não era disto que eu estava à espera, mas, intimamente, era disto mesmo que eu precisava. Sabia que me ia fazer mal, mas no momento, não me importei. Eu estava paralisada de prazer e expectativa, só de olhar para o prato…

Agora já consigo manter-me serena, quase indiferente. Sinto um baque no peito, como se o coração fizesse uma marcha-atrás brusca em direcção à minha coluna, torna-se difícil manter uma respiração regular. Depois tudo serena. Sorrio, confiante, e tento concentrar-me no que se passa à minha volta. Sei desse feixe de luz que me persegue, sinto-o na ponta dos meus dedos, flutuando nos meus cabelos. Sei-o aqui e sei que irei, inevitavelmente, na sua direcção. Como uma borboleta que se despenha contra o candeeiro…

O brownie mantia-se altivo, firme e teso, quase no centro do prato. A massa, achocolatada, fina, ligeiramente crocante e esponjosa, abria-se, esventrava-se, deixando ver o seu interior. A imagem era quase pornográfica. Um creme escuro, morno, escorria preguiçosamente na superfície branca do prato, inundando as minhas papilas gustativas de pensamentos pouco castos. O toque de luxúria, um quadradinho de chocolate branco, desfazendo-se no meio do creme castanho. Uma sinfonia a duas cores, aquele brownie.

Igual, tal e qual como o conheci. A pele tostada pelo sol equatorial, os olhos ariscos (duas órbitas verde-água, em torno das quais gravita o mundo), e todo ele, dourado, produzindo efeitos de desejo em mim, de tal forma que ainda hoje não consigo descrever as formas do seu corpo. Sei-o um pouco mais alto, um pouco maior. Não demasiado magro, não demasiado largo. As mãos estranhamente ásperas e aquela pose de Baudelaire pós-moderno. Pairando e aprendendo nas cidades, sonhando e sofrendo por um outro lugar. Sofisticado. O seu discurso irrita-me, ensona-me, não percebo o que quer de mim. E da vida. Mesmo assim, não consigo afastar as minhas mãos do seu corpo. Tocamo-nos casualmente, fingimos ser essencial que os nossos dedos se acariciem, atrás das costas (ninguém pode saber). Sinto as suas mãos rudes nas minhas costas. Pára, porque eu não quero parar.

Mergulhei a colher naquele mar escuro. Afundei-a lentamente no brownie, misturando o crocante com o molho. Hmmm… À segunda colherada, resolvi juntar-lhe um pouco do gelado de baunilha que aguardava, pacientemente, do outro lado do prato. O frio da bola gelada contrastou na perfeição com a lassidão do chocolate. Uma perdição. Uma colherada, duas colheradas… Não devia comer mais, faz-me tão mal!! Uma vez não são vezes… Sei que me vou arrepender. Ah! Esqueci-me da fruta! Algures, perdidas na imensidão da louça alva, jaziam umas rodelazinhas de diversos frutos. Amoras, morangos e dois exemplares exóticos não identificáveis. A mais, na minha opinião, mas penso que acharam interessante a sua inclusão, para contrastar com a opulência (às vezes enjoativa, confesso) desta orgia de chocolate. Dispensavam-se bem.


Mergulhei, mais uma vez, nos seus olhos. Segundos, apenas, só o suficiente para saciar a minha sede de verde. Não sei porque é que continuo a achá-lo enfeitiçante. Sei que ele me faz mal e ainda bem. Tê-lo diariamente seria mergulhar no abismo. Assim, estes encontros esporádicos não me matam, não me martirizam. Conversamos sobre temas higienicamente correctos, misturando frases e palavras com significados (muito) dúbios. Só nós sabemos o que dizemos. Podia continuar neste jogo para sempre, uma vida inteira, mesmo que nada mais acontecesse… Podíamos ser dois velhinhos sexagenários, com as respectivas famílias, trocando comentários bem-humorados e picantes, sobre um episódio carnal, irrepetível. Ou podíamos… Não, não podemos. Podemos, sim, entrelaçar os dedos, sem que ninguém veja, sentir o calor da pele, olhar-nos, tentar perceber as vontades e os medos. Aaaah! Esqueci-me da parte menos boa da história. A namorada. Essencial na vida de um homem que se preze. O tal apoio, a tal cumplicidade. Sem demasiada chama, para não cansar. A paixão consome o corpo, não queremos isso ao pequeno-almoço, dia após dia. Dispensa-se bem.

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