Cenas de um casamento

“Há uma festa linda a acontecer no mundo e nós não fomos convidados”
excerto da peça “Submarino”

Devido a um voyeurismo nem sempre bem disfarçado, costumo demorar-me em frente da montra de uma loja de fotografia. Não para admirar a qualidade dos trabalhos (composições demasiado folclóricas e conservadoras, pirosadas visuais), mas sim para saber como vão as vidas cá da terra. Quem casou, quem teve filhos, quem se licenciou… todas estas informações estão escarrapachadas nas várias molduras que compõem a vitrina do estabelecimento (o mais afamado da cidade). Mesmo com o advento das câmaras e telemóveis digitais, a minha gente continua a fazer questão de “olhar para o passarinho”, seja para registar o casamento para a posteridade, seja para fazer uma sessãozinha com o rebento de 2 meses (mesmo que não se consiga melhor do que imagens de um chorão baboso, mordendo os mais variados brinquedos). A montra é o verdadeiro reflexo do status quo local. Embora se realizem dezenas de sessões fotográficas, só uma meia-dúzia consegue chegar-se à frente, à montra, ficando à vista de todos os transeuntes e remetendo para a inexistência todas as outras, as “não-mostráveis”.
Cá estão eles, os bebés chorões, as cachopas recém-doutoradas, com o bafiento traje académico e a pasta recheada de fitas coloridas, o tradicional retrato da tradicional família portuguesa, uma ou outra moçoila em poses semi-provocantes, decerto com ingénuas ambições de chegar às passarelles e, claro, as cenas de casamento. Noivas e noivos, apanhados em cenários mais ou menos bucólicos, em poses mais ou menos estudadas. Foi uma destas imagens de felicidade matrimonial que me captou a atenção. Aparentemente, nada de novo. A foto, ampliada para uma dimensão quase obscena, dominava o panorama da montra central. A impressão, em tons sépia, conferia a tão desejada sensação de seriedade e de intemporalidade. O cenário escolhido foi uma viela estreita, ladeada de casas antigas. O chão, em paralelos de granito. Ao fundo, alguns carros, movimento na rua que entronca com a viela. Uma imagem igual a tantas outras. Algo mudou quando a observei mais atentamente. Quem está “de fora” vê a rua num plano ligeiramente inclinado para a direita. E é à direita, em primeiro plano, que surge a noiva. Gorducha, cerca de 25 anos, cabelo apanhado no alto da cabeça, caracóis moldados à força de ferros e muita laca, madeixas loiras. Tem uns peitos avantajados, espremidos dentro do corpete do vestido. A saia rodada marca-lhe a barriga e as coxas roliças. Parece boa rapariga, apesar dos óculos de lentes redondas e pequenas lhe darem um ar vagamente néscio. O sorriso, de lábios cerrados, parece mais conformado do que feliz. Da figura de branco, ligeiramente, apatetada, passo para a parte esquerda da composição. A fotografia foi ampliada em largura, e penso que o processo aumentou o espaço existente entre as duas margens. No lado oposto, o esquerdo, em segundo plano, está o noivo. Em mangas de camisa, o colete desabotoado. Está sentado na soleira de uma porta, o tronco curvado sobre a perna esquerda. Na coxa direita repousa a mão que segura o cigarro. Enquanto a sua recém-mulher olha para a câmara, ele aguarda, notoriamente aborrecido. O olhar, absorto, esvaziado de qualquer tipo de emoção. A sua postura assemelha-se à de um operário da construção civil, descansando depois de uma difícil jornada de trabalho. Acho que tive uma epifania,devido a esta foto. Não milito fervorosamente contra a sagrada instituição do matrimónio. Respeito quem opta pela cerimónia religiosa e, que raio, mentiria se dissesse que nunca me imaginei percorrendo a nave, em direcção ao altar, qual merengue humano, pronta a ser desposada pelo meu pinguim... Fantasias delirantes todos temos, mas não perco demasiado tempo a pensar nesse tipo de cambalachos. Sonho, sim, com um tipo porreiro, que goste de mim e que não permaneça ao meu lado por qualquer tipo de obrigação, seja ela moral, financeira, religiosa ou mesmo física.
O olhar dos coitados da fotografia sintetiza tudo aquilo que me faz regurgitar de raiva, tudo aquilo que abomino nas relações actuais. Há dias, um amigo descrevia-me a sua relação como “um investimento”: “Eu investi o meu tempo com esta pessoa, não vou arriscar a segurança que esta relação me dá por causa de um devaneio”. Outra colega dizia-me, com um brilho no olhar que, apesar dos ciúmes obsessivos do namorado, das constantes chantagens emocionais e do facto de ter cada vez menos tempo para sair com os amigos, estava desesperadamente apaixonada e não colocava sequer a hipótese de o perder.
Paradoxo! Obsessão, posse, desespero, voracidade, no início, calculismo, pragmatismo revoltante quando a relação atinge a velocidade de cruzeiro. Gostava de encontrar uma resposta, uma tese (ainda que moralista) para esta dualidade de critérios. Para mim, que vivo sempre na estratosfera do “Planeta Relações Funcionais”, é difícil entender porque é que tudo tem de caminhar, invariavelmente, de um estado de quase combustão espontânea, para uma convivência suportável, tolerável, asséptica. Deve ser assim que tem que ser.

Ainda continuo à espera de me ver (a mim e a ele, seja ele quem for) na fotografia. Não naquela, não daquela forma. Numa imagem que nos roube a alma. Uma imagem onde o nosso olhar, sem esforço, espelhe o amor.

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