Um homem normal (continuação)

As luzes estroboscópicas quase o cegaram, tal era a intensidade do aparato luminoso do sítio. Após o branco inicial, começou a distinguir os contornos do espaço. Havia muita gente, muitos corpos apinhados, com muito pouca roupa.
A casa era realmente bem frequentada! Na pista bamboleavam jovens de aspecto felino, cabelos cuidadosamente penteados, alisados à força de ferros estilizadores e o último grito em produtos de estética capilar. Tinham todo o ar de modelos, manequins… ou prostitutas de luxo. Tanto lhe fazia, ia dar ao mesmo. De qualquer maneira, aquelas gatinhas esquálidas não lhe diziam muito. Quer dizer, não se importava de levar uma delas para casa, para provar, pelo menos uma vez na vida, aquela (pouca) carne de marca, aquelas pernas compridas e aqueles pescoços de gazela. Mas não. Aquele tipo de mulher não lhe inspirava confiança.
Guiado pelo sabedor amigo, que o conduzia aconchegado debaixo do seu braço musculado, foi-se aproximando do bar. O monólito de aço inoxidável e vidro fosco irradiava brancura, que transformava os copos semi-vazios em pequenas estátuas de cristal luzente. Observou demoradamente o balcão, parando nos vários pares de mãos que nele repousavam, aguardando o seu pedido, gesticulando, acariciando outra mão. Dedos magricelas e engelhados de quarentonas loiras e plenas de botox, dedos curtos e ágeis de mariconços alegres, adornados com joalharia barata, dedos brancos e finos de jovens bonitas de ar triste, dedos espertos e rudes de engatatões da noite, peritos em desapertar blusas e fazer descer cintos de liga.
Pediu um whisky com água tónica. Não estava muito certo se devia continuar a beber. Sabia que ia chegar a casa cambaleante, uma razão extra para ela lhe consumir o juízo. Decidiu arriscar.
O líquido, ligeiramente viscoso, aqueceu-lhe a garganta, o esófago, o estômago. Sorriu, sentindo-se acarinhado por aquela ternura invisível do álcool que percorria o seu corpo. A noite prometia.
Ao seu lado, o amigo não perdia tempo. De costas para o bar, observava longamente a multidão, soltando comentários maliciosos sobre esta ou aquela. O restante grupo tinha-se dispersado pela casa. Dois bebericavam, sentados nos sofás de veludo negro, outro ensaiava uns passos de dança na pista, enquanto trocava olhares com miúdas de ar falsamente inocente.
Sentou-se num tamborete, forrado no mesmo tecido dos sofás. Naquele recanto do clube conseguia observar todo os ângulos do espaço, mas não podia ser facilmente visto. Duas grossas colunas protegiam-no dos olhares indiscretos da multidão, permitindo-lhe, no entanto, um raio de visão bastante confortável.
Pousou o copo, meio cheio da mistura alcoólica, em cima de uma pequena mesa rectangular, feita do mesmo material turvo do bar.
Apoiou os cotovelos nas próprias coxas e, com as costas ligeiramente curvadas, fechou os olhos, mergulhando naquele banho cálido de gente, música palpitante, perfumes doces e ácidos, cheiro de carne humana. Conseguia sentir o próprio sangue palpitar na jugular, e ia afiançar que o seu coração batia ao mesmo ritmo dos sons exóticos que saíam da cabine do DJ directamente para os seus neurónios. Estava um pouco desactualizado. Aqueles trechos soavam-lhe estranhos, mas a batida era inconfundível, igual à primordial. Quem viveu intensamente o nascimento do house, do trance, do jungle, do techno, a época confusa e dourada do submundo da dança, que havia coincidido astrologicamente com a sua adolescência, nunca poderia arrancar da sua memória sonora aquela batucada electrónica. Tão bruta, tão fria, mas tão familiar.
Imagens do passado recente desfilavam em catadupa nas pálpebras semi-cerradas. O pé sapateava segundo a cadência da melodia. 18 anos, a esperteza toda aplicada naquelas preciosas noites de sábado. Os primeiros engates, perseguir mulherões, levar negas, bebedeiras monumentais, ressacas curadas na areia morna da praia, três meses de férias. Despreocupações.
Porque é que lhe doía tanto cada vez que pensava naquele tempo? Por vezes, quando conseguia analisar racionalmente aquele aperto irritante no coração, chegava à conclusão que sentia saudades de algo que nunca tinha existido. De um tempo áureo que nunca o havia sido. Se fizesse um pequeno esforço, conseguia lembrar-se de pormenores menos felizes dessa altura. As dificuldades financeiras dos pais, por exemplo. Essa era uma das principais razões que o fazia agarrar-se obstinadamente ao presente. Pela primeira vez na vida, tinha dinheiro para fazer o que lhe apetecesse. Tudo. Até podia esbanjar, se lhe desse na cabeça. O dinheiro. Desprezava-o tanto e não podia viver sem ele. Vivia numa relação quase doentia de prazer e de culpa, martirizando-se por cada compra fútil e apascentando a alma cada vez que verificava o extracto bancário.
Ergueu ligeiramente a cabeça, em direcção à área VIP. No meio da obscuridade… um casaco branco, umas pernas, aquele rabo enfiado numas calças de ganga justas… O cabelo revolto. Era ela.
(continua...)

Comentários

tmnp disse…
ok... encontrei o segundo episódio, o terceiro anda onde mesmo?

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