Another Angel


“So what does it matter , who really cares
In this river of faces , in this new windy place
I will lose all your traces , I'll go and find another angel”
“Another Angel”
Lizz Wright


Às tantas, já nem aqueles rostos que considerava próximos e afáveis me conseguiam fazer sair da modorra, do sentimento opressivo de vazio. Incomodavam-me as conversas ocas, sem sentido, onde apenas se escutavam “eus” autistas. Ninguém falava de nada em particular, e os assuntos despejados à mesa eram apenas uma mera desculpa para cada um falar de si. Como se o facto de passarmos os dias a desmembrar a vida dos outros, a capturar a felicidade e a desgraça de terceiros, criasse em nós uma necessidade violenta de falar. De ouvir a nossa voz, reverberando nos olhos, nos ouvidos, nas bocas uns dos outros. Acreditávamos que, se berrássemos para o vizinho do lado, interrompendo o seu discurso, cortando o seu raciocínio, conseguiríamos perceber o que estávamos a dizer, a sentir. Aquele que, nos primeiros dias, era um olhar de curiosidade, desejo e carinho, tornou-se uma mirada de desprezo, de nojo, de asco. Estávamos todos juntos mas, à medida que as horas passavam, sentia-me cada vez mais sozinha, com vontade de fugir para o meu quarto, enfiar-me debaixo dos cobertores e deixar de escutar. Queria que sentissem a minha falta, que chamassem por mim, que se preocupassem. Que arrombassem a porta e, estupefactos, me encontrassem a dormir placidamente, cabelos espalhados na almofada, anjo, ninfa, ser diáfano.

Deixei-me de sonhos e ilusões patetas. Eu queria apenas, durante este hiato de realidade, ser a tua amante. Como havia sido nas quatro estações passadas. Desfrutar, numa cumplicidade ilusória, dos teus beijos, dominadores, quentes, agressivos, das tuas mãos, que teimavam em puxar-me o cabelo, da tua voz, ácida e profunda. No último encontro, não pude deixar de me assombrar com os teus olhos. Redondos, enormes, duas lagoas de cor indefinida, dois pequenos oceanos onde eu queria mergulhar e morrer, até acordar.

Olhei-te, mas não te vi. Tinhas os olhos bem abertos, mas eu não te via. Tu também não me vias.
Quis gritar, insultar-te (Cabrão! Filho da puta insensível! Egoísta!), pegar-te na mão e esmagar-ta contra o meu peito (“Eu não sou como tu! Não tenho gelo no lugar do coração!). Queria fazer-te entender que era EU, que só eu valia a pena. Que, se quisesses, seria tua amante para sempre. Depois de casamentos, filhos e netos, encontrar-nos-íamos numa casinha à beira-mar e, entre um charro e um beijo, fodíamos, como o havíamos feito nas quatro décadas anteriores. Uma história trágico-cómica, feita de noites passadas em locais distantes, em hóteis, casas-de-banho, vãos de escada, doces recordações que, ao contrário dos amores perdidos e das relações mortas, apenas nos fariam sorrir. Nesse teu olhar, não havia réstia de desejo. Só pena, desrespeito, escárnio. Para mim, tu eras o meu ilegítimo amante, amor de devaneios. Para ti, eu não era mais do que um episódio. Uma miúda parva, que estava ali à mão quando não havia mais ninguém.

“Os homens são todos iguais!”, disseram alguns. “Tu mereces muito melhor!”, opinaram outros. O que lhes tentava explicar era apenas isto: eu não te quero. Não quero pertencer-te. Não quero que me pertenças. Não quero domesticar-te. Era incapaz de conviver com esse teu feitio insuportável, a tua agressividade quase primitiva. Sexo, o teu corpo selvagem no meu. A saborosa dor e, depois, encostar a minha cabeça no teu peito. Roçar a minha cara, suavemente, nos teus cabelos prateados, beijar levemente as tuas pálpebras cerradas e sentir as cócegas das tuas longas pestanas.

Delicadeza nunca foi o teu forte. Numa curta frase, usando outras palavras, chamaste-me puta… e foi nesse momento que despertei do meu sonho.

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