Merry Fucking Christmas

A esta hora, o senhor Silva da repartição das Finanças vai no décimo copo de Monte Velho. A mesa está repleta de restos de rabanadas, resquícios de bolo-rei, despojos de papel de embrulho, laçarotes e palitos. Os cunhados arrotam discretamente enquanto conversam sobre futebol. A sogra dormita em frente à lareira, com os beiços engelhados, já sem a placa. A mulher e as cunhadas, quase gemelares nas suas formas desleixadas e roliças, maldizem uma vizinha, os vestidos da Catarina Furtado e "aquelas ranhosas do programa da TVI, que se vão casar à borla". A vontade de desapertar o cinto é grande mas, como todos os Natais, o senhor Silva respira fundo, encolhe a barriga e, olhando soturnamente o líquido cor de tição que flutua no copo, pensa...

Pela centésima vez no espaço de doze horas, Amélia faz o trajecto cozinha-sala-cozinha. Os filhos ainda estão acordados e, não satisfeitos com os presentes dos avós, tios e padrinhos, exigem já a entrega das oferendas parentais. Tentando equilibrar-se nos saltos demasiado altos (os sogros, gente de outra estirpe, sempre tiveram quem lhes confeccionasse as ceias de Natal e, noblesse oblige, a noite de Consoada pede os melhores trajes), transporta uma bandeja com sonhos e outra com leite-creme. Apetece-lhe soltar o cabelo, expulsar aquela corja de lapas, amordaçar os miúdos e dar um sonífero potente ao marido, encher a banheira de água quente e sais aromáticos, enrolar uma ganza, beber uma garrafa de champanhe e... afundar-se...

Bernardo (BES, sucursal de Campo de Ourique) olha-se ao espelho uma última vez. Está indeciso. Desaperta o quarto botão da camisa Armani? Sim,que se lixe, é Natal, ninguém leva a mal! Recentra a fivela do cinto D&G nos jeans Levi's, miraculosamente ajustados ao rabo musculado, à força de muitas horas de ginásio. Um último retoque na melena cuidadosamente aparada de modo a parecer negligé e rebelde, um pouco mais de spray fixante e... vamos a isto! No hall de entrada do seu T1 nem vestígios da quadra mais aguardada do ano, apenas uma pirâmide de cristal que projecta um arco-íris disforme na parede branca. Quando se despediu da mãe, uma hora antes, desculpou-se dizendo que ainda queria passar em casa da namorada. A mãe beijou-o e, com um misto de compreensão e tristeza, despediu-se dele. No rádio do seu Audi TT toca "Fast Love"... Destination, Bairro Alto. Meia dúzia de passadas ágeis e está diante da porta de metal, pesada, gasta pelos anos de copos, excessos e corpos. Empurra-a, a música dos anos 80 escorre dengosamente das colunas. A pista, mal-iluminada, congrega as ovelhas dispersas do rebanho, braços que se agitam sem ritmo, sem força. Lança olhares, cumprimentos furtivos. Olha, escolhe, avança... Um cuzinho apertado... hmmmm... Aquele serve perfeitamente... é giro, apesar de parecer bastante novo... Se a mamã soubesse, morria de desgosto.

Merry Fucking Christmas!

Comentários

Olá. O que me saiu da boca no fim, embora o final o soubesse assim que passaste do feminino ao masculino, foi: - Tu és tramada.

Beijos

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