Puella

- Psst… ó menina!
Carregada com sacos de compras e ofuscada pela luz amarelo-vivo do fim de tarde, a rapariga teve dificuldade em perceber quem a chamava. Semicerrou os olhos e, numa questão de segundos, a sua expressão passou da interrogação para um sorriso de confusão e espanto.
- Olha quem ele é! Há tanto tempo…
O homem, de tez muito morena e olhos ariscos, saltou do carro num ápice para a cumprimentar. Deu dois passos hesitantes e, como que avaliando o que os anos tinham feito por ela, não conseguiu evitar olhá-la de alto a baixo, antes de a cumprimentar com dois beijos tímidos e fugidios.
- Estás mais alta ou é impressão minha? – atirou ele, à queima-roupa, arrependendo-se de imediato do comentário.
- Não! – respondeu ela, prontamente, com uma gargalhada cristalina – Tu é que estás mais baixo!
Com uma simples frase, tinha conseguido deixá-lo desconcertado e sem resposta. Sentiu a força daquelas palavras como se de um murro no estômago se tratasse. Cada sílaba tornara-o consciente dos anos que haviam passado, como se lhe apontassem setas aos espaços luzidios no crânio, sulcados pela calvície, à pequena, mas incómoda, saliência abdominal, às pregas sulcadas nas comissuras dos lábios e das pálpebras, aos seus respeitosos 40 anos, atirados ao chão por aquela miúda insolente.
Trocaram algumas frases de circunstância, informações triviais sobre a vida de cada um. Sem que nenhum dos dois se apercebesse, falavam com um à-vontade e desenvoltura pouco próprios de quem nunca tinha tido uma relação próxima, com a agravante de estarem há quase dez anos sem se verem. Há quase uma década, tinham trabalhado juntos. Ou melhor, ele tinha ficado encarregue de orientar o estágio daquela adolescente roliça e insubordinada, de tentar obter alguns resultados produtivos do benjamim. Não tinham ficado propriamente amigos. Não era tanto pela diferença de idades, mas pelo carácter intratável da miúda. Passado o breve período em que conviveram no mesmo espaço, seguiram o seu caminho e não mantiveram nenhuma espécie de contacto. Durante esses anos, viram-se de relance em uma ou duas ocasiões, mas nenhum sentiu o ímpeto de se aproximar do outro. Ela estudou, começou a trabalhar, ele seguiu a sua vida, cumprindo todos os trâmites exigidos a um homem adulto, bem instalado na vida.
Sabe-se lá como, tinha-a reconhecido à primeira. Naquela tarde quente e pegajosa de Agosto, enquanto aguardava que a mulher saísse do supermercado, observava sem grande interesse os transeuntes, através do retrovisor do carro. De repente, viu-a e, num impulso inexplicável, chamou-a. Chamou-a, sem saber o que estava a fazer nem o que iria dizer se ela o reconhecesse, se não fugisse, se se aproximasse e falasse com ele.
E, quando aquela menina-mulher de cabelos revoltos lhe sorriu, sentiu-se desarmado, sem saber o que pensar… sentiu, no entanto, que estava a abrir, mesmo sem querer, a caixa de Pandora…
(continua…)

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