Ítaca

O mito diz que Ulisses navegou durante dez anos no Mediterrâneo, enfrentando inúmeras provações e perigos, apenas para poder voltar, finalmente, a Ítaca. E a Penélope. Ítaca é o destino final, mas é também o lugar do eterno retorno. Aquele limbo, mágico e perturbador, onde retornamos, irremediavelmente. Se a vida de uns é uma Odisseia (onde tudo começa, se desenvolve e termina), a de outros é uma Ilíada (uma história onde os acontecimentos se precipitam em espiral).
Ilíada, então.

Regresso a Ítaca. Nunca cá estive, mas tenho a estranha sensação de já me ter encontrado aqui. O céu abre-se, furioso, desabando em bátegas de água. Fujo do mar, ouço-o rugir, cada vez mais imperceptivelmente. O mar fica para trás.
Refugio-me em Ítaca, sempre nova, com um travo amargo de destino.

Tudo é branco, alvo, níveo. Madeira e chuva.

Beija-me. Não perde tempo (não há tempo a perder). Tudo é previsível. Só não esperava estes lábios invulgarmente macios e carnudos (dois morangos maduros na minha frágil boca), as mãos hábeis e o aroma deliciosamente fresco da sua pele.

Um dia, muito antes de Ítaca, disse-lhe que o seu corpo era uma maçã. Um pecado. Ele riu-se. Eu tinha razão.

Tanto corpo! Todo aquele corpo nas minhas mãos, toda aquela perfeição cinzelada... Respiro fundo e, por momentos, recuo. Invade-me um sentimento imenso de gratidão pelo mundo, pela água, pela terra, pela dádiva que são os nossos corpos. Vindos da dor, feitos para o prazer.

Provo-o, provo cada pedaço da sua pele, aspirando o suave perfume que se desprende do seu peito, da sua barriga, do seu sexo. Aproveito alguns escassos segundos para o contemplar. Sinto medo. Estou ali, mas já não estou. Entrego-me, mas quero fugir. Quero estar sozinha. Resisto a olhá-lo, mais uma vez. Todo ele é pura estética, inefável, mito.

De manhã, hei-de fixar, uma última vez, a curva sinuosa das suas costas, adornadas por uma fina penugem crestada pelo Sol. Sol, mar, água, carne, sexo.

Solto as amarras e venço a ideia de ficar. Regresso ao mar.

“Freedom is the best gift of life. So take it.”

Comentários

Puro, honesto e verdadeiro. Mas contudo, é discutível a noção de liberdade, tal como a de Ilíada e Odisseia. Existem quando comparadas com a madorna. No seu sentido mais puro e mais estrito, prefere-se a Odisseia,pois a Ilíada é estética, bela mas vazia, arbitral, sendo que corremos o risco de repetir Deleuze, a quando do seu fim: "enganei-me"

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