A "missa"
Missa I
Quando eu era pequena, a minha mãe obrigava-me a ir à missa. A eucaristia foi, até aos 12 anos, um castigo dominical que eu, agnóstica avant la lettre do conhecimento sobre o significado da expressão, cumpria religiosamente. O ritual causava-me uma verdadeira angústia, com repercussões psicológicas e até físicas. Como é tradição nas terras pequenas, que regem o seu quotidiano pelos calendários paroquiais, o Domingo é dia de festa. Da festa do Senhor e da Senhora. E, já agora, das senhoras, que se emperiquitam com as melhores fatiotas para ouvir a palavra divina. Nos primórdios da década de 90, as multinacionais de pronto-a-vestir eram uma miragem e as fatiotas domingueiras provinham das mãos de fada das modistas. Comprava-se o tecido, que era levado à costureira. Eram tiradas as medidas e, duas provas depois, a farpela estava pronta. Havia uma mania qualquer com os vestidos, com golas de renda e laçarotes na cintura. Fazendas ásperas, de cores medonhas, que estrangulavam o pescoço e arranhavam nas costas. Lá ia eu, pelas frias dez horas da manhã, não sem antes inventar mil e uma desculpas para faltar ao compromisso. Dores de barriga, a chuva, o sol, os desenhos animados, “não me apetece”, nenhum argumento conseguia derrubar a vontade da minha progenitora de me transmitir o seu fervor católico. Aliás, fervor é o que menos existia naquelas celebrações enfadonhas, de 45 minutos (45 minutos contados. Eu sei-o. Eu contava todos os minutos, os segundos. Observava, no mostrador com o rato Mickey, o ponteiro engolir vagarosamente o tempo, perante o meu desespero). 45 minutos. Levanta, benze, senta. Levanta, canta, repete, senta. Ajoelha, senta, levanta. Repete, repete, repete. Nunca percebi porque é que a Igreja considera a missa a “celebração da palavra”. Lá a parte da palavra até se compreende. Aos 6 anos, eu já conseguia proferir coisas como “bendito” e “ventre” ou expressões como “a paz de Cristo” e “por minha culpa, minha tão grande culpa”. Em coro com as restantes alminhas, olheirentas e pachorrentas, repetia as orações, secretamente questionando que culpa. Sim, que culpa? Que culpa carregará uma criança? Porque é que eu havia de repetir aquelas palavras, acompanhadas das respectivas palmadas correctivas no centro do peito? Fazia-me confusão pedir desculpa por erros que eu não tinha cometido. Às tantas, já achava que qualquer acção, mesmo a mais inocente, fazia de mim uma pecadora. Assim, já tinha razões para sovar o meu peito com orgulho...
O vestido de flanela pica nas costas e no pescoço. A camisola interior é pequena demais para o meu tronco rechonchudo. Aqueles hediondos collants escorregam-me pelas coxas roliças, a costura já vai a meio das pernas e apetece-me levantar a saia para os puxar. Não posso. Quero tossir, mas as velhas beatas olham-me com desdém e levam um dedo engelhado aos lábios: “Xiu!!!”. Os Invernos, visitados pelas constipações, pela tosse violenta que me atacava os pulmões. Tentar não tossir demasiado alto. Cada arranque desesperado, cheio de expectoração, ecoa no templo de pedra. Tenho vergonha. Mas não tenho culpa.
A homilia, para os leigos, cerca de dez minutos, durante os quais o sacerdote faz um brilhante monólogo - agora que penso, algo digno de stand up comedy, uma reflexão sobre as leituras bíblicas e uma provável analogia com a situação do momento, muitas vezes catastrófica, raraz vezes esperançosa ou alegre.
À medida que os anos foram passando e fui conhecendo o que era aquela organização chamada Igreja e a sua história, questionei todos aqueles rituais. Porque é que eu havia de repetir as mesmas palavras, domingo após domingo, sem as sentir? Pior: porque é que eu havia de me juntar a 200 pessoas, cuja esmagadora maioria não percebia 90% daquilo que estava a papaguear? Sejamos francos. Quantas beatas sabem que “Amen” significa “assim seja”?
Deixei, de vez, os vestidos de flanela. Os sapatos apertados, o “coro dos jovens” ( uma máfia liderada por meninas queques, que sabiam tocar órgão e solfejar. Semi-virgens que ostracizavam qualquer menina que não tivesse uma voz maviosa, que fosse, como eu, contralto. Com a minha voz de bagaço, eu estava condenada a não pertencer à ala dos passarinhos cantantes), a tortura sabática da catequese. Tudo. Troquei a Igreja pelo teatro e, mais tarde, pelas noitadas nos bares e discotecas. Vi menos decadência nas caminhadas pela linha do comboio até ao Vidrarias (calças de ganga largas e rasgadas, B52, cigarros fumados às escondidas, as primeiras curtes), nos cachorros do Merdas do que nas tardes de Sábado, fechada, a escrever textos de louvor ao Senhor e a dizer “sim, Maria é Virgem”.
Claro que tantos anos de educação católica (apostólica romana) deixaram marcas. Quando, aos 22 anos, visitei o Vaticano, senti uma estranha emoção, uma alegria e tristeza infinitas. Foi como tornar a ver um velho amor. O sentimento está lá, mas sabemos que já não é o mesmo de antes.
Quando, por vezes, brinco com a “herança judaico-cristã”, em situações de dúvida entre o prazer a culpa (o querer e o dever), eu própria reflicto o sintoma deste legado. Bem ou mal, eu fui uma parte dos catecismos, do salão paroquial, da comunhão solene, dos Dias de Ramos, do Natal, da missa de Ano Novo, do Pentecostes. De todos esses rituais bizarros que a gente triste e bisonha (os paroquianos) cumpre.
Missa II
Sexta-feira é um dia cruel para quem é solteiro. O trabalho parece não fluir a partir das 3 da tarde, os olhos ansiosos cruzam-se. Ouvem-se suspiros solidários. “Quando é que podemos sair?” é a pergunta que perpassa a mente de todos. Seria tão bom se, nos locais de trabalho, existisse o liceal toque de saída. Seria estranho, mas belo, ver engravatados, administradores, secretárias e afins voarem, quais pardais estouvados, porta fora, deixando as cadeiras ao abandono e os computadores ligados, deixados à sorte de um screensaver qualquer. Enquanto isso não acontece, inventam-se desculpas para garantir que, por volta das seis da tarde, já não reste vivalma nos open spaces desta nação. Sexta e eu sem planos. Os amigos, devido a um alinhamento planetário cruel, têm companheiro fixo. Têm planos para um fim-de-semana divertido/romântico em Sintra/Tróia/Alentejo. E eu encalhada em Lisboa. Convido um amigo, que já não vejo há muito, para um café. Sms de resposta: “Não posso, tenho que ir à ‘missa’ “. Estranho. O meu amigo é ateu confesso e as aspas retiram o significado literal do substantivo. Insisto. A explicação não tarda. “Vou sair com a minha namorada e com os amigos dela. LOL”.
LOL. Rindo às gargalhadas. Para um ateu, sair com a namorada e com os respectivos compinchas é tão-só o equivalente a ir à missa. Ainda demorei um pouco a digerir a comparação, a perceber se era uma piada pouco feliz, puro mau gosto ou apenas um desabafo. Depois de tentar perceber o que leva um homem, com um relação de um par de anos, a comparar uma noite com a companheira a um ritual castrador, apercebi-me de algo. E a conclusão chegou forte e cruel. EU NÃO PERCEBO. Não percebo como é que chegamos a um ponto das nossas vidas em que abdicamos da emoção, da novidade, do desejo, em favor de uma estabilidade podre, que sabemos não desejar. Seremos assim tão inseguros, tão estupidamente medrosos, que nos agarramos a uma relação coxa apenas para não ficarmos sozinhos? Daqui a uns anos, quem sabe, relerei estas palavras e achá-las-ei ingénuas. Perceberei que há coisas na vida diária mais importantes que a paixão. Que uma relação é 90% de negócio e 10% de desejo. E hei-de, obedientemente, aceitar as regras do jogo. Se não quiser ficar sozinha. Hei-de encontrar satisfação nas conquistas profissionais, no saldo bancário que engorda a cada mês que passa, no carro novo, num qualquer amante ocasional, em qualquer coisa que não o meu cônjuge. E, se algo correr mal, sei que terei aquela muleta, ainda que gasta e frouxa, do meu lado. Não há nada melhor do que a segurança.
Mas... por enquanto... não. Passei a noite de Sexta sozinha. Como passo muitas noites. E, lá no fundo, a minha tristeza diluiu-se com a compaixão que senti pelo meu amigo e pela namorada. Tão acompanhados e tão sós. Se calhar é só inveja. Se calhar não.
Só sei que não hei-de ir a essa “missa”.
Quando eu era pequena, a minha mãe obrigava-me a ir à missa. A eucaristia foi, até aos 12 anos, um castigo dominical que eu, agnóstica avant la lettre do conhecimento sobre o significado da expressão, cumpria religiosamente. O ritual causava-me uma verdadeira angústia, com repercussões psicológicas e até físicas. Como é tradição nas terras pequenas, que regem o seu quotidiano pelos calendários paroquiais, o Domingo é dia de festa. Da festa do Senhor e da Senhora. E, já agora, das senhoras, que se emperiquitam com as melhores fatiotas para ouvir a palavra divina. Nos primórdios da década de 90, as multinacionais de pronto-a-vestir eram uma miragem e as fatiotas domingueiras provinham das mãos de fada das modistas. Comprava-se o tecido, que era levado à costureira. Eram tiradas as medidas e, duas provas depois, a farpela estava pronta. Havia uma mania qualquer com os vestidos, com golas de renda e laçarotes na cintura. Fazendas ásperas, de cores medonhas, que estrangulavam o pescoço e arranhavam nas costas. Lá ia eu, pelas frias dez horas da manhã, não sem antes inventar mil e uma desculpas para faltar ao compromisso. Dores de barriga, a chuva, o sol, os desenhos animados, “não me apetece”, nenhum argumento conseguia derrubar a vontade da minha progenitora de me transmitir o seu fervor católico. Aliás, fervor é o que menos existia naquelas celebrações enfadonhas, de 45 minutos (45 minutos contados. Eu sei-o. Eu contava todos os minutos, os segundos. Observava, no mostrador com o rato Mickey, o ponteiro engolir vagarosamente o tempo, perante o meu desespero). 45 minutos. Levanta, benze, senta. Levanta, canta, repete, senta. Ajoelha, senta, levanta. Repete, repete, repete. Nunca percebi porque é que a Igreja considera a missa a “celebração da palavra”. Lá a parte da palavra até se compreende. Aos 6 anos, eu já conseguia proferir coisas como “bendito” e “ventre” ou expressões como “a paz de Cristo” e “por minha culpa, minha tão grande culpa”. Em coro com as restantes alminhas, olheirentas e pachorrentas, repetia as orações, secretamente questionando que culpa. Sim, que culpa? Que culpa carregará uma criança? Porque é que eu havia de repetir aquelas palavras, acompanhadas das respectivas palmadas correctivas no centro do peito? Fazia-me confusão pedir desculpa por erros que eu não tinha cometido. Às tantas, já achava que qualquer acção, mesmo a mais inocente, fazia de mim uma pecadora. Assim, já tinha razões para sovar o meu peito com orgulho...
O vestido de flanela pica nas costas e no pescoço. A camisola interior é pequena demais para o meu tronco rechonchudo. Aqueles hediondos collants escorregam-me pelas coxas roliças, a costura já vai a meio das pernas e apetece-me levantar a saia para os puxar. Não posso. Quero tossir, mas as velhas beatas olham-me com desdém e levam um dedo engelhado aos lábios: “Xiu!!!”. Os Invernos, visitados pelas constipações, pela tosse violenta que me atacava os pulmões. Tentar não tossir demasiado alto. Cada arranque desesperado, cheio de expectoração, ecoa no templo de pedra. Tenho vergonha. Mas não tenho culpa.
A homilia, para os leigos, cerca de dez minutos, durante os quais o sacerdote faz um brilhante monólogo - agora que penso, algo digno de stand up comedy, uma reflexão sobre as leituras bíblicas e uma provável analogia com a situação do momento, muitas vezes catastrófica, raraz vezes esperançosa ou alegre.
À medida que os anos foram passando e fui conhecendo o que era aquela organização chamada Igreja e a sua história, questionei todos aqueles rituais. Porque é que eu havia de repetir as mesmas palavras, domingo após domingo, sem as sentir? Pior: porque é que eu havia de me juntar a 200 pessoas, cuja esmagadora maioria não percebia 90% daquilo que estava a papaguear? Sejamos francos. Quantas beatas sabem que “Amen” significa “assim seja”?
Deixei, de vez, os vestidos de flanela. Os sapatos apertados, o “coro dos jovens” ( uma máfia liderada por meninas queques, que sabiam tocar órgão e solfejar. Semi-virgens que ostracizavam qualquer menina que não tivesse uma voz maviosa, que fosse, como eu, contralto. Com a minha voz de bagaço, eu estava condenada a não pertencer à ala dos passarinhos cantantes), a tortura sabática da catequese. Tudo. Troquei a Igreja pelo teatro e, mais tarde, pelas noitadas nos bares e discotecas. Vi menos decadência nas caminhadas pela linha do comboio até ao Vidrarias (calças de ganga largas e rasgadas, B52, cigarros fumados às escondidas, as primeiras curtes), nos cachorros do Merdas do que nas tardes de Sábado, fechada, a escrever textos de louvor ao Senhor e a dizer “sim, Maria é Virgem”.
Claro que tantos anos de educação católica (apostólica romana) deixaram marcas. Quando, aos 22 anos, visitei o Vaticano, senti uma estranha emoção, uma alegria e tristeza infinitas. Foi como tornar a ver um velho amor. O sentimento está lá, mas sabemos que já não é o mesmo de antes.
Quando, por vezes, brinco com a “herança judaico-cristã”, em situações de dúvida entre o prazer a culpa (o querer e o dever), eu própria reflicto o sintoma deste legado. Bem ou mal, eu fui uma parte dos catecismos, do salão paroquial, da comunhão solene, dos Dias de Ramos, do Natal, da missa de Ano Novo, do Pentecostes. De todos esses rituais bizarros que a gente triste e bisonha (os paroquianos) cumpre.
Missa II
Sexta-feira é um dia cruel para quem é solteiro. O trabalho parece não fluir a partir das 3 da tarde, os olhos ansiosos cruzam-se. Ouvem-se suspiros solidários. “Quando é que podemos sair?” é a pergunta que perpassa a mente de todos. Seria tão bom se, nos locais de trabalho, existisse o liceal toque de saída. Seria estranho, mas belo, ver engravatados, administradores, secretárias e afins voarem, quais pardais estouvados, porta fora, deixando as cadeiras ao abandono e os computadores ligados, deixados à sorte de um screensaver qualquer. Enquanto isso não acontece, inventam-se desculpas para garantir que, por volta das seis da tarde, já não reste vivalma nos open spaces desta nação. Sexta e eu sem planos. Os amigos, devido a um alinhamento planetário cruel, têm companheiro fixo. Têm planos para um fim-de-semana divertido/romântico em Sintra/Tróia/Alentejo. E eu encalhada em Lisboa. Convido um amigo, que já não vejo há muito, para um café. Sms de resposta: “Não posso, tenho que ir à ‘missa’ “. Estranho. O meu amigo é ateu confesso e as aspas retiram o significado literal do substantivo. Insisto. A explicação não tarda. “Vou sair com a minha namorada e com os amigos dela. LOL”.
LOL. Rindo às gargalhadas. Para um ateu, sair com a namorada e com os respectivos compinchas é tão-só o equivalente a ir à missa. Ainda demorei um pouco a digerir a comparação, a perceber se era uma piada pouco feliz, puro mau gosto ou apenas um desabafo. Depois de tentar perceber o que leva um homem, com um relação de um par de anos, a comparar uma noite com a companheira a um ritual castrador, apercebi-me de algo. E a conclusão chegou forte e cruel. EU NÃO PERCEBO. Não percebo como é que chegamos a um ponto das nossas vidas em que abdicamos da emoção, da novidade, do desejo, em favor de uma estabilidade podre, que sabemos não desejar. Seremos assim tão inseguros, tão estupidamente medrosos, que nos agarramos a uma relação coxa apenas para não ficarmos sozinhos? Daqui a uns anos, quem sabe, relerei estas palavras e achá-las-ei ingénuas. Perceberei que há coisas na vida diária mais importantes que a paixão. Que uma relação é 90% de negócio e 10% de desejo. E hei-de, obedientemente, aceitar as regras do jogo. Se não quiser ficar sozinha. Hei-de encontrar satisfação nas conquistas profissionais, no saldo bancário que engorda a cada mês que passa, no carro novo, num qualquer amante ocasional, em qualquer coisa que não o meu cônjuge. E, se algo correr mal, sei que terei aquela muleta, ainda que gasta e frouxa, do meu lado. Não há nada melhor do que a segurança.
Mas... por enquanto... não. Passei a noite de Sexta sozinha. Como passo muitas noites. E, lá no fundo, a minha tristeza diluiu-se com a compaixão que senti pelo meu amigo e pela namorada. Tão acompanhados e tão sós. Se calhar é só inveja. Se calhar não.
Só sei que não hei-de ir a essa “missa”.
Comentários
Pois... não te quero desmotivar, mas eu já lá estou - naquele tempo do "daqui a uns anos" - e afinal ainda não considero ingénuas reflexões deste tipo que fiz hà uns anos atrás - na tua idade - e que continuo a fazer agora, na minha idade.
Se calhar, há coisas que não mudam. Talvez a única coisa que mude é que começamos a aceitar-nos mais serenamente tal como somos - mas mesmo isso, tem dias! ;-)