Esta noite

“Esta noite vou ser pássaro / vou voar todo o teu corpo
/ minhas asas são de aço / tua pele de ferro e fogo / por isso... vem...”
Pedro Abrunhosa
“Noite na Noite”

Procurei-te no sítio do costume. Estavas igual, igual em todos estes nossos encontros. Mal entrei naquele buraco empestado de fumo, suor e vozes abafadas pelo matraquear mecânico dos sons da moda, senti o teu cheiro animal. Essa tua essência que te distingue, esse teu perfume de fêmea, sempre no cio. Cumprimento-te com um beijo tímido na face. Ris-te e olhas-me de forma irónica. Agarras o meu rosto nas tuas mãos e mordes os meus lábios. Solto-me de ti e olho em redor, embaraçado. Reparas no meu desconforto e voltas a sentar-te no tamborete, voltando todo o teu corpo para o vazio das luzes intermitentes.
- Parece que já não gostas... – dizes num tom infantil, que contrasta tanto com a tua pose de mulher fatal, o que me faz sorrir.
Sento-me com dificuldade no pequeno banco ao teu lado. Enlaço a tua cintura fina e puxo-te para mim. Sinto a tua pele jovem, morna. Coloco as minhas mãos sobre os teus seios, que reagem imediatamente ao toque.
- Pára! O que é que pensas que eu sou? Não sou uma puta! Não podes chegar aqui e começar logo com o apalpanço!
Acho-te piada. Acho piada a este súbito ataque de pudor e racionalidade. Eu sei que gostas de ser a minha puta e, no fundo, tu também o sabes. A minha putinha...
- Porque é que te estás a rir? Por acaso tenho cara de palhaça?
-Não. Tens cara de quem está a precisar de mandar uma queca!
Piorou. Agora é que se vai mesmo embora. Tento remediar a situação, dando-lhe a mão por baixo da mesa. Ela gosta destas demonstrações de carinho.
Conta-me que está farta da faculdade, dos colegas atrasados mentais e dos professores herméticos e bafientos. Esta semana conheceu um rapaz, mais novo. Conversaram, pareciam entender-se bem. Depois descobriu que ele tinha namorada e perdeu o interesse.
- Já não aguento mais isto. Ando sempre no fio da navalha. É com o dinheiro, com os prazos de entrega de trabalhos, com os gajos. Estou farta disto!
Minha querida, como eu te queria dar aquilo que necessitas. Dava-te uma casa, emprenhava-te, fazia de ti uma senhora respeitável. Podias andar a passear na Baixa todo o dia, a fazer compras e a tomar chá com as tuas amigas, porque eu sei que é isso que tu desejas no teu íntimo. Desejas ser domada por um macho, queres pertencer a alguém.
Mas não posso. Bem sabes que só se pode ter uma esposa de cada vez , e a que deixo em casa todas as noites para vir ter contigo serve-me para o que quero. Paz e filhos.
- Vou buscar alguma coisa para beber. Queres?
- Traz-me uma cerveja... preta. Guiness.
- Mais alguma coisa, sinhôzinho? – riposta, irritada. Sim, já agora, podes ajoelhar-te aqui mesmo e fazeres-me um broche. Tive um dia cansativo lá na empresa e preciso relaxar.
-Não, por agora é tudo. – digo, com um sorrisinho malandro. A gaja lê-me os pensamentos e lança-me um olhar furibundo.
Observo-a a dirigir-se ao bar. Inclina-se sobre o balcão e faz o pedido ao barman, trocando sorrisos com o belo exemplar. 1,90m, costas mais largas que um armário, ar de quem passa o dia no ginásio e a noite a foder com tias entupidas de tempo e dinheiro, jeans impossivelmente ajustados na virilha e t-shirt a marcar a peitaça de Hércules pós-moderno (deve ser paneleiro... ou então dá para os dois lados).
Está a fazer-se a ela. Olha-lhe descaradamente para o decote, enquanto ela explica não sei o quê e aponta para um dos expositores do bar. Deve estar a escolher uma das suas bebidas caras, já sabe que hoje sou eu que pago. Continuam a conversar animadamente e o caralho do gajo sempre a topar-lhe as mamas! Foda-se, vou já lá acabar com esta brincadeira.
- Então querida, já escolheste? – coloco-me por detrás dela, passando-lhe o braço por cima dos ombros. Espero que o esperto perceba que este território é meu.
- Já pai, quero aquele Xerez óptimo, igual ao que bebemos no último fim de semana em Sintra. Lembras-te? Aquele que a mamã disse que era muito forte!
Ao tipo do bar só lhe falta babar-se em cascata. Sorri que nem uma hiena esfomeada porque pensa que sou pai dela. Esta miúda saiu-me cá uma peça! O pior é que pareço mesmo pai dela, assim de fato, gravata e ar de quem saiu tarde do escritório. Mas não me parece que este lupanar seja ponto de encontro para muitas reuniões de família, portanto diagnostico estupidez crónica ao modelito.
- Então, tipo, e o senhor, tipo, vai beber o quê? – Diagnóstico correcto. Suburbano de gema. Deve viver com os pais num T2 no Cacém.
- Uma Guiness. Vá, vamos. – assim que recebo o copo com líquido negro das manápulas do seboso, agarro-a pela mão e puxo-a até à mesa. Já vai ouvir das boas...
- Olha lá, mas qual foi a intenção?
Sorri, beberica aquela merda que me vai custar os olhos da cara (e o do cú) e diz:
- Foder-te. Adoro ver-te fodido.
E nisto, nem me dá hipótese de responder, encaixa agilmente uma das minhas pernas entre as coxas e mordisca-me o pescoço. E eu fico ali, meio parvo, de Guiness na mão, a ser comido por uma miúda que podia ser minha filha (quase).
Já que ali estou, mais vale alinhar no jogo. Parece que hoje vou ter uma reunião até às tantas! Meto-lhe a mão entre as coxas e afago a carne macia e quente, no limiar das meias de liga. Pouso a porcaria da cerveja e agarro-a pela nuca, puxando-lhe levemente os cabelos escuros e ondulados. Acto contínuo, responde ao puxar da crina com um olhar que me mata por dentro. Leio-lhe nas pupilas muito dilatadas: “Quero-te todo...”




“Nas sombras do meu quarto há mil sonhos por cumprir”
Pedro Abrunhosa
“Deixas em mim tanto de ti”


Ele acredita mesmo que gosto dele. Ele ainda é daqueles gajos que acreditam nas teorias do pacóvio do Freud, que vê sexo e frustrações em todo o lado. Ele pensa que eu vejo nele o meu pai, uma figura autoritária, violenta, repressiva, ausente. Deixo-o acreditar no que o faz mais feliz, no que melhor se adapta ao seu esquema mental. Não o quero perturbar com o que se passa comigo... acho que ele não ia compreender.
O tempo passa depressa quando nos encontramos, e ainda bem. São momentos em que não penso muito no que não fiz, no que tenho de fazer e não tenho coragem para executar. Ele vê-me como uma miúda “para a frente”, com lábia e que até é boa na cama. Óptimo para ele. Óptimo para nós.
Quando chego a este cubículo exíguo a que ironicamente chamo “casa”, invade-me esta sensação de nojo de mim mesma. Tomo banhos a escaldar para poder limpar o meu corpo de uma qualquer oleosidade invisível, para poder desentupir os meus poros da porcaria da cidade, das porcarias que vejo e que ouço. Sonho com aquele momento em que vou ter a minha independência e vou finalmente sair deste ciclo vicioso de sexo, de aborrecimentos, de planos por concretizar, de pessoas medíocres e ideias ainda mais pobres. Mas depois apercebo-me que é aqui que eu pertenço. Eu não fui talhada para o sucesso, para ser limpa e pura, para tal o tal aspecto das meninas dos anúncios dos pensos higiénicos (“limpa e fresca, todo o dia”). Não posso aspirar àquilo que não foi feito para mim.
Leio um texto qualquer, de mais um daqueles teóricos da Sociologia contemporânea. Foucault, Luhman, Macluhan, a aldeia global e o saber ao alcance dos meus olhos cansados, que orbitam na esfera das minhas olheiras azuláceas. Gostava de compreender como é que estes gajos decidiram orientar a sua vida para produzir pura e simplesmente conhecimento teórico. Que é que construíram na sua vida? Que legado deixaram para os seus filhos? (Se é que os tiveram... Foucault era paneleiro e misógino... menos um para a conta...). Mudaram o pensamento das sociedades? Não me parece. Qual a verdadeira percentagem da quase ignorante populaça que conhece os estudos sobre o panóptico, sobre a influência dos meios de comunicação na opinião pública? Parece-me que se toda a gente tivesse acesso a estes dados e os compreendesse, se eles se tornassem senso comum, os tumultos sociais seriam diários, o mundo acabava. Somos alvos de manipulação constante. E felizes daqueles que não se apercebem disso e continuam a labutar, a comer, a procriar, a foder e a produzir porcaria e a ver programas de televisão que parecem vómito pronto a consumir.
Hoje estive com ele. Comemo-nos no bar do costume e depois fodemos no carro dele. Ainda lhe sugeri que subisse e aproveitasse o facto de ainda ontem ter mudado os lençóis da minha cama, mas recusou. Deu a desculpa do costume, que já era tarde, a excelsa esposa devia estar furiosa e desconfiada (também, só uma parva total é que não desconfiava que o marido lhe andava a enfeitar a cabeça, depois do gajo chegar a casa 4 das 7 noites da semana depois da uma da manhã. Reuniões de trabalho! Pois claro, trabalhassem efectivamente todos os executivos encornadores que dão esta gasta desculpa e Portugal ascenderia imediatamente ao top ten dos países mais produtivos.). Aceitei a resposta e fizemo-lo ali mesmo. Até porque, para dizer a verdade, o que me estava mesmo a apetecer era chegar a casa, tomar um banho bem quente e enfiar-me na cama a ouvir música e a deliciar-me com literatura inconsequente (Pedro Paixão, filho, o que seriam as minhas noites solitárias sem a tua preciosa companhia!).
Aquilo processa-se tudo de uma forma muito rápida, quase mecânica. Uns beijos e apalpanços para aquecer, ele enfia as manápulas dentro da minha camisola, baixa-me ligeiramente o sutiã e fricciona-me os mamilos até ficarem duros (efeito igualmente produzido com uma boa rajada de vento frio). Entretanto, para não me aborrecer com o processo, vou-lhe tirando a pila de dentro das calças. Esfrego-a, para cima e para baixo, até ficar completamente dura (ou o mais dura possível, tendo em conta os 40 anos e a cada vez mais gritante falta de exercício físico do meu querido amante). Ele vai ficando todo ofegante e entusiasmado, e agora chega a parte mais complicada: como me desenvencilhar das calças? Exigiu alguma perícia, mas depois de algumas acrobacias e uma cãibra na perna esquerda, lá consegui livrar-me de metade da peça de roupa (sim, não ia estar a dar-me ao trabalho de tirar por completo as calças!).
O resto é história. Enfia, enfia, mais rápido, mais devagar, rápido, rápido, rápido, uuuh, uuuhh, aaaah, aaaaah, vou-me vir vou-me vir, vem-te vem-te.... ahhhhhhhhh, foda-se que booooom...
Agora me recordo que vi uns cartazes na faculdade de uma festa qualquer, no Lux. Vou falar ao pessoal, pode ser que por milagre de uma conjuntura astrológica favorável, os ânimos dos meus amigos estejam de feição e queiram ir todos dar um pé de dança.
Está-me a apetecer uma noitezinha das típicas. Jantar no Chinês, Bairro Alto para os copos iniciais e para possíveis engates pré-disco (hmmm, o Bairro está repleto de betinhos rebeldes, de cabelos desgrenhados e corpos tonificados, impregnados de horas de rugby, basquetebol, voleibol. Jovenzinhos inocentes e charrados, de olhinhos miúdos do fumo e das cervejas... uuuuhhhh, já estou a ficar com água na boca...). E depois é só tomar o balanço do frio da noite e do calor da sangria e ir descendo até à zona ribeirinha. Entro e ofereço-me à música, para que me metamorfoseie e cure. Posiciono-me no centro da pista, deixo que as luzes, multicolores e psicadélicas, me ceguem e me guiem a um universo paralelo. Um mundo só daqueles que se deixam possuir pela batida do house, do drum ‘n bass, do chill out... Os baques do meu coração confundem-se com as batidas violentas da música, os holofotes são mil sóis que bronzeiam a minha pele transparente, deixando impressos no meu corpo os vocábulos monocórdicos que saem das colunas.
Balanço os braços de forma descoordenada, sou uma marioneta que apenas responde aos estímulos do DJ. Ele é o feiticeiro da tribo, e nós somos o seu séquito.
- Let the sun shiiiiiiiineeeeee..... Let the sun shine iiiinnnnnnnnnnnn....
Enquanto os sons electro-tropicais troavam dos altifalantes, fui até ao bar buscar qualquer coisa para molhar a garganta. Começava a ficar incomodada pelo suor que me escorria pelas costas e empapava os sovacos. Como precisava mesmo de me hidratar ( o álcool já tinha actuado de forma diurética... a minha língua parecia um pedaço de cartão), pedi um sumo de laranja. De repente, uma mão desconhecida toca-me no rabo:
- Olá jeitosa, posso oferecer-te alguma coisa?
Sim! Sim! Mil vezes sim! Era mesmo disto que eu precisava! Mas estes gajos são tirados a papel químico ou quê? Algures nos súburbios de Lisboa, deve haver um laboratório gigantesco, clandestino, onde se produzem estas tristes tentativas de homem. Devem ter um nome, e se não têm qualquer registo de fabrico, certamente são apelidados de Renatos, Andrés, Nunos ou variedades nominais afins (No entanto, devo confessar que o manancial de nomes masculinos é bastante reduzido. Não há grande margem de manobra para descobrir quais os nomes cujos donos são oriundos de Cascais ou Cacilhas, mas as subtilezas estão lá, e só uma mente treinada as consegue destrinçar).
- Não. – será que fui suficientemente explícita? Ou será que o meu olhar furibundo, aumentado pelo rímel esborratado, não o assustou?
- Então miúda, não sejas assim tão cortada... – este está a pedi-las. Primeiro, odeio que me digam semelhante coisa (‘cortada’... afinal o que é uma pessoa ‘cortada’?). Segundo, o palhacito deve pensar que estou desesperada o suficiente para engolir a sua pretensa táctica da impaciência (Despacha-te, ó garina, estão umas vinte atrás de ti, à espera que as cubra e as preencha com a minha essência masculina). Terceiro, o seu ar de playboy ensebado está a provocar-me estranhas convulsões na zona abdominal.
- Já paraste para pensar no que estás a fazer aqui?
- Hã? – Aí está! O sublime grunhido da estupidez.
- Iá meu, o que é que estás a fazer aqui? O que é que estamos todos a fazer aqui?! Já paraste para pensar nisso? – a conversa / monólogo adquire agora características verdadeiramente surreais. Cá estou eu, com o meu sumo de laranja na mão, gelo a derreter, gotinhas de água translúcidas descem-me pelos dedos. A minha cabeça está próxima do ouvido do meu interlocutor. Berro-lhe as tais questões existenciais, enquanto ele franze energicamente o sobrolho, não sei se na tentativa de ouvir melhor se de tentar compreender pelo menos metade do que lhe digo. Após uma pausa que parece demorar uma eternidade (ou o desgraçado tem um atraso mental qualquer ou então é um filósofo e está a elaborar uma resposta de cair para o lado), decide-se. O proeminente maxilar move-se com esforço, aclara a garganta num “cof cof” esforçado e prepara-se para me iluminar com as suas reflexões.
- Então... mas posso conhecer-te ou não?
Tenho de começar a apostar no Totoloto. No dia em que um espécime destes me surpreender, juro que vou a Fátima a pé. Ou melhor, juro que vou a Fátima (Signo Peixes, pés sensíveis...).

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